De acordo com a pesquisa Ipec de 2022, os cigarros eletrônicos, “vapes”, são usados por mais de 2,2 milhões de brasileiros, além dos quase 6 milhões de adultos que usam o cigarro tradicional e já experimentaram o produto.

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Essa curva de experimentação cresce ano a ano, e o número de consumidores habituais mais do que quadruplicou entre 2018 e 2022.

No entanto, curiosamente, a venda, importação e publicidade dos cigarros eletrônicos são proibidas no Brasil desde 2009 pela Anvisa, que sempre avalia o tema.

Da última vez, em 2022, o órgão decidiu manter a proibição. Agora, pela primeira vez, a discussão chega ao Congresso.

Nessa quinta-feira (28), a Comissão de Assuntos Sociais do Senado (CAS) realizou uma primeira audiência pública para analisar a regulamentação da venda do cigarro eletrônico no país.

A discussão foi proposta pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS).

Um dos argumentos mais usados por quem defende a liberação do produto é que ele funcionaria como um substituto menos nocivo dos cigarros tradicionais.

Outra alegação é que, ao legalizar e definir regras para esse mercado, os consumidores estariam mais seguros.

Entretanto, especialistas em saúde contestam a medida. Segundo eles, o vape não é menos nocivo do que o cigarro tradicional, e liberá-lo poderia dar justamente essa impressão.

Prejuízos ‘encobertos’

O uso do cigarro convencional é baseado na queima do tabaco, o que gera uma mistura de compostos tóxicos.

Já no dispositivo eletrônico, um líquido é aquecido até que vire vapor para ser inalado.

O tal líquido normalmente é um composto que leva nicotina, sabores artificiais, aromatizantes, glicerina e propilenoglicol.

A concentração de cada componente varia de marca para marca. Justamente pelo fato de o vape não depender de combustão, é comum ouvirmos que ele é menos nocivo.

Mas, segundo especialistas, essa característica não torna o aparelho inofensivo.

“O vape tem que ser analisado de acordo com seus componentes”, aponta a cardiologista Jaqueline Scholz

A nicotina, por si só, já seria bastante preocupante.

Muitos dispositivos concentram sais de nicotina, fazendo com que a concentração da substância, no fim das contas, seja muito mais alta.

O resultado é uma maior probabilidade de dependência.

“O jovem fica absolutamente vulnerável. A nicotina acaba provocando uma abstinência tão intensa e rápida nesses usuários que eles ficam vaporizando a todo momento”, avalia Jaqueline.

Dessa maneira, perde-se a conta do número de tragadas.

Além da nicotina, o cigarro eletrônico conta com outras duas substâncias essenciais: propilenoglicol e glicerol, ambos solventes, que ajudam a nicotina a dissolver e produzir a fumaça.

O propilenoglicol gera uma substância que é o formaldeído, também conhecido como formol, considerado cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer.

O vapor do cigarro eletrônico também pode conter outras substâncias potencialmente danosas, incluindo aromatizantes e metais pesados, como níquel e ferro.

A bateria do dispositivo representa um perigo extra: entre janeiro de 2009 e 2016, 195 incidentes de explosão e incêndio envolvendo um cigarro eletrônico foram relatados pela mídia dos EUA, diz relatório da U.S. Fire Administration.

Redução de danos?

Alguns estudos até confirmam a teoria da substituição.

Um deles, feito com 638 pessoas pelo MUSC Hollings Cancer Center, nos Estados Unidos, relatou que os participantes trocaram completamente os cigarros convencionais pelos vapes.

Eles também foram mais propensos a relatar que reduziram as tragadas diárias e o número de “tentativas de parar” com outros métodos.

O Reino Unido acredita tanto nisso que está apostando nos vaporizadores para cumprir a meta de reduzir para 5% o número de fumantes até 2030.

Em abril, o governo inglês anunciou o programa “Swap to Stop” (“Trocar para parar”, em tradução livre).

Nele, um milhão de usuários de cigarro convencional receberão um kit gratuito de cigarro eletrônico como estímulo para a troca.

Cigarro eletrônico x tradicional

Mesmo que o cigarro tradicional seja de fato trocado pelo vape, isso não é visto como uma vantagem por profissionais da saúde.

A cardiologista Jaqueline Scholz, coordenadora do Comitê de Controle do Tabagismo da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), nota que quem faz a substituição não largou de fato um hábito nocivo.

“Para vencer a dependência da nicotina, é preciso fazer um tratamento para o tabagismo, e não substituir o produto”, diz ela, que já testou métodos com 70 a 74% de eficácia em seus grupos de estudos.

Segundo a médica, os novos produtos oferecem elevadas concentrações de nicotina e levam à dependência precoce.

Ela faz a seguinte comparação: considerando que um maço convencional tem 20 cigarros e as pessoas costumam dar 10 tragadas por unidade, quem fuma um pacote inteiro ao dia dá cerca de 200 tragadas.

Entre quem usa cigarro eletrônico (e de maneira modesta), o número de tragadas chega a 600; em entrevistas, Jaqueline descobriu que o vape de 1.500 tragadas dura dois dias para esses indivíduos.

“Como o cheiro é agradável, isso faz com que o indivíduo use o dispositivo eletrônico de forma discreta e sistematicamente”, afirma.

Cabe destacar ainda que, embora a discussão da regulamentação foque na troca do cigarro convencional pelo eletrônico, a verdade é que muita gente que talvez nem se tornasse fumante tem sido seduzida pelos vapes.

Em maio de 2022, um trabalho publicado na revista científica Pediatrics mostrou que mais de 1 milhão de jovens americanos de 14 a 17 anos se tornaram novos usuários de tabaco entre 2017 e 2019.

Aesses, cerca de 75% optaram pelos vapes.

Impactos na saúde

Ao abordar os malefícios ligados ao cigarro convencional, os pulmões são imediatamente lembrados pelos especialistas. Não é diferente com os vapes.

“Os pulmões são órgãos que se desenvolvem até em torno dos 20, 25 anos de idade. Ora, se órgão ainda está se formando e você já está colocando substâncias químicas nele, esse processo não ocorrerá do jeito que deveria”, ensina Paulo Corrêa, pneumologista e coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).

Ainda segundo o médico, isso significa que os usuários de vape começarão a vida adulta com a função pulmonar abaixo do que seria o usual.

Além disso, eles correm maior risco de desenvolver doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) cedo na vida.

Há ainda chance de encarar a chamada lesão pulmonar associada ao uso de cigarros eletrônicos (Evali, na sigla em inglês).

Até 2020, foram registradas mais de 2 800 hospitalizações e 68 mortes por conta desse quadro.

Os sintomas são semelhantes aos da covid-19, como falta de ar, tosse, dor no peito, febre e calafrios, diarreia, náusea, vômito e dor abdominal.

Uma pesquisa publicada na revista World Journal of Oncology mostrou que fumantes de cigarros eletrônicos são diagnosticados com câncer quase 20 anos mais cedo que usuários de tabaco tradicional.

Já outro estudo, do Hospital para Crianças Doentes (SickKids), em Toronto, no Canadá, indicou que jovens que usam, ou já usaram, cigarros eletrônicos são quase duas vezes mais suscetíveis a ter estresse crônico do que aqueles que não utilizam os dispositivos.

Os vapes têm consequências no sistema imunológico.

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, descobriu que a inalação do vapor, pode impedir o funcionamento normal das células imunológicas capazes de enfrentar doenças.

Uso por jovens

E cabe reforçar: um dos grandes problemas é que os cigarros eletrônicos estão sendo usados sobretudo por jovens que nunca fumaram cigarros convencionais antes.

De acordo com o relatório Covitel, a maior prevalência de experimentação do cigarro eletrônico ocorre entre os jovens de 18 a 24 anos.

Um levantamento feito pela Food and Drug Administration (FDA) estimou que mais de 2 milhões de estudantes do ensino fundamental e médio das escolas de lá usam cigarros eletrônicos.

De acordo com uma pesquisa de 2022 feita pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), a chance de um adolescente que experimentou um cigarro eletrônico passar a fumar o cigarro tradicional é quatro vezes maior em relação àqueles que nunca consumiram o dispositivo eletrônico.

A percepção de que o cigarro eletrônico é completamente diferente do cigarro tradicional incentiva o consumo jovem.

A própria nomenclatura mais usual denuncia isso: ao invés de cigarro, são ‘vapes’ ou ‘pods’.

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Proibir ou liberar?

Nos últimos anos, o Brasil reduziu de maneira significativa o tabagismo.

Na visão de muitos especialistas em saúde, o consumo de vape e uma eventual liberação colocam em xeque os avanços no combate à dependência da nicotina.

Um trabalho publicado no ano passado comparou países com legislação proibitiva de cigarro eletrônico e países que liberaram o consumo.

Ele mostra que a taxa de usuários entre jovens é três vezes maior nos países que apostaram na legalização.

Segundo o estudo, “a maioria das políticas restritivas, como a proibição dos cigarros eletrônicos, parece reduzir o uso de cigarros eletrônicos entre os jovens.”

Hoje, outros 31 países proíbem a venda, incluindo os vizinhos Argentina e Uruguai.